Miguel Gullander
(1975 – †2024)

In Memoriam

Celebro a vida de Miguel Gullander. Não escrevo o seu obituário, mas a sua celebração. A vida de um professor é feita de descobertas. Às vezes descobrimos um aluno que nos transforma e nos faz sermos melhores professores e melhores pessoas. Às vezes temos a sorte de “perfilhar” um aluno e ajudá-lo a crescer profissionalmente, porque há nele ou nela talento tão grande que seria absurdo não fazermos tudo o que for possível fazer para que ele ou ela possam brilhar talvez mais do que nós próprios. Foi assim com o Miguel Gullander, que começou por ser meu aluno na licenciatura. Depois quis ir fazer um mestrado em educação na Suécia, o que fez com o mesmo brilhantismo com que tinha feito a licenciatura portuguesa. Foi muito elogiado na Suécia, mas quis que o mérito fosse da formação que obteve na FCSH. O Miguel somou sempre sucessos por mérito próprio sem dar muito valor a isso. Aqueles que o conheciam e que com ele se cruzavam reconheciam-lhe mais facilmente o seu enorme valor do que ele próprio.
Aventurou-se por vários países africanos de expressão portuguesa e ainda por Timor-Leste. Sempre que me telefonava parecia ser de um sítio diferente, mas era sempre de muito longe. Às vezes, era apenas para ouvir uma voz amiga. Vejo agora que esses simples telefonemas e as vezes em que foi possível o reencontro na FCSH tinham mais importância do que imaginava. É difícil compreender que haja uma espécie de solidão obscura em pessoas tão claramente reveladoras.
África não foi só o lugar de vários portos de abrigo. África tornou-se a sua pele e o seu coração. Passou por muitos sofrimentos apertados por causa das várias doenças que o martirizaram, mas saiu sempre mais vivo de cada uma delas. Mesmo quando a sorte não o protegia. Queria mais, não para si, mas para poder dar aos outros sempre mais. Por outras palavras, queria aprender mais para poder ensinar mais e melhor. É isto que é verdadeiramente ser professor. Quis fazer um doutoramento. Tinha de ser comigo. Chamava-me mentor e mestre, mas eu é que aprendia sempre mais com ele. Deixava-me muitas vezes desarmado com o enlevo com que lia os meus livros e o valor que dava aos meus conselhos. Sempre que me escrevia, começava com “Meu muito estimado professor…”. Mas foi tão pouco o que lhe dei para merecer essa estima extrema se comparado com o muito que ele soube depois aproveitar e passar a muitas gerações de outros professores e futuros professores. Deixou uma marca única. Eu digo sempre aos meus alunos futuros professores: se querem ser professores, devem deixar a vossa marca, pois isso é o que vão levar de melhor desta profissão: saber que nunca alguém esquecerá o que ensinámos. Porque também nós somos o produto de outros que nos ensinaram assim antes. Quanta paixão pela literatura o Miguel levou por tantos lugares onde parecia ser impossível ela poder revelar-se. Cada um de nós guardará esse testemunho único.
Tinha a legítima ambição de voltar a Portugal e deixar de ser sempre o eterno Marinheiro-de-Estrada. Insisti que devia acabar o doutoramento várias vezes adiado, por causa dos muitos obstáculos que a vida lhe foi colocando à frente. Foi uma alegria muito grande tê-lo terminado com grande mérito. Estava à espreita de uma oportunidade de concurso em alguma universidade portuguesa que precisasse de um professor de literatura, sem descuidar das suas missões sempre ao serviço do Instituto Camões, que lhe deve muito e que lhe devia prestar uma homenagem justa. Nunca apareceu essa oportunidade e prosseguiu o seu caminho errante, assumidamente errante, construindo ao mesmo tempo uma breve carreira literária, com livros de grande qualidade, reservando já um lugar na nossa literatura portuguesa contemporânea. 𝐴𝑡𝑟𝑎𝑣𝑒́𝑠 𝑑𝑎 𝐶ℎ𝑢𝑣𝑎 devia ser leitura obrigatória em todas as escolas angolanas. Miguel fez-se africano na escrita e soube elevar-se nessa africanidade pura. Nunca fui a Angola, mas conheço Angola pelo olhar e pela escrita de Miguel Gullander e, como seu leitor e ouvinte amigo, fez-me sempre querer conhecer esse lugar onde habita a Palanca Negra Gigante. Na obra de ficção de Miguel, podemos acreditar que os mitos aprenderam também uma forma de habitação entre nós.
Já não fui a tempo de lhe oferecer o meu último livro. Tínhamos combinado enviá-lo por correio, mas preferíamos que fosse uma entrega pessoal, como um pretexto para falarmos do ensino da literatura e de quanto o livro fazia falta em Angola. Mas agora é o professor Miguel Gullander que faz muita falta a Angola, à África de língua portuguesa e a toda a lusofonia. São os livros dele que vão fazer sempre falta, porque é a única forma de um professor-escritor não morrer verdadeiramente.
Um outro escritor, John Berger, em 𝐻𝑒𝑟𝑒 𝐼𝑠 𝑊ℎ𝑒𝑟𝑒 𝑊𝑒 𝑀𝑒𝑒𝑡, diz que os mortos vivem sempre quando nos lembramos deles, por isso Miguel Gullander viverá nas nossas lembranças para sempre. Estarei sempre contigo, 𝑚𝑒𝑢 𝑚𝑢𝑖𝑡𝑜 𝑒𝑠𝑡𝑖𝑚𝑎𝑑𝑜 Miguel.
 
Carlos Ceia, 13/03/2024
CETAPS